O que vem à sua cabeça quando ouve falar em inteligência artificial aplicada à saúde?
Provavelmente algo positivo: diagnósticos mais precisos, cirurgias assistidas por robôs, prevenção de doenças raras, talvez até a promessa de prolongar a vida humana.
Mas… e se eu te dissesse que, nos Estados Unidos, planos de saúde passaram a usar modelos de IA treinados para negar tratamentos médicos, muitas vezes sem qualquer revisão humana?
Apesar dessa realidade distópica já existir, nem todos aceitaram esse cenário em silêncio.
Neal K. Shah, ex-executivo financeiro que viveu na pele o sofrimento de cuidar de quem ama, decidiu mudar o status quo, criando uma startup que usa um modelo treinado para lutar contra a IA das seguradoras.
Entendendo o sistema de saúde americano
Quando me mudei para os EUA, em abril deste ano, uma das primeiras coisas que fiz foi tentar entender como funcionava o sistema de saúde. Confesso: até agora não consegui entender tudo por completo.
No país onde vivo hoje, o sistema individual de saúde inicia sua lógica por meio do marketplace federal, uma espécie de “feira oficial de planos de saúde”, mas que abre apenas uma vez por ano para novas adesões ou mudanças.
Se você perder esse prazo, só poderá se inscrever mais tarde se tiver um evento de vida qualificado (como uma mudança de estado, casamento, perda de cobertura anterior etc.).
Mesmo após conseguir um plano, você acaba enfrentando:
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Coparticipação (co-pay): um valor fixo que você paga por cada consulta ou exame, mesmo com o seguro ativo.
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Dedutível (deductible): o valor mínimo que você precisa pagar do próprio bolso antes que o seguro comece a cobrir a maior parte dos serviços.
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E algo que me pegou de surpresa: muitos planos têm redes restritas a um estado ou região; se você se muda (como nós, da Flórida para a Carolina do Norte), pode enfrentar dificuldades para mudar o plano ou manter cobertura contínua na nova localização.
Além disso, uma simples ida ao pronto-socorro pode gerar uma fatura de milhares de dólares, mesmo para quem tem plano de saúde ativo. Foi só vivendo isso de perto que percebi o tamanho da complexidade e da vulnerabilidade que muitas pessoas enfrentam.
E é nesse ambiente que entraram as IAs das seguradoras.
A IA que virou juíza da saúde
Nos últimos anos, a negação de cobertura se tornou uma das marcas do sistema de saúde americano.
Pacientes pagam caro por prêmios mensais e, ainda assim, descobrem que seus planos recusam tratamentos recomendados pelos próprios médicos.
Segundo a KFF (Kaiser Family Foundation), em 2023, uma em cada cinco solicitações feitas por beneficiários do Affordable Care Act foi negada. Esses planos cobrem mais de 20 milhões de americanos.
Auditorias mostraram que o Medicare Advantage, que atende outros 30 milhões de idosos, também atrasa ou nega milhões de pedidos todos os anos.
O mais impactante é que menos de 1% dos pacientes recorre. Como explica Neal Shah, fundador da Counterforce Health:
“Noventa e nove por cento dos pacientes ou familiares nunca apelam. Dos poucos que apelam, 40% vencem. Isso mostra que a maioria se sente intimidada — e que grande parte dessas negações é totalmente injustificada.”
A situação piorou com a entrada da inteligência artificial. Grandes seguradoras passaram a usar modelos que analisam prontuários, aplicam regras de cobertura e geram cartas de recusa em massa, sem revisão humana.

Em 2022, uma investigação da ProPublica revelou que a Cigna negou 30 mil pedidos em apenas dois meses por meio de um algoritmo. No ano seguinte, a UnitedHealth foi processada por usar um sistema chamado nH Predict para interromper tratamentos de idosos mesmo contra recomendação médica.
Críticos afirmam que esses sistemas reduzem pacientes a números, priorizando custos sobre ética. Escrever uma apelação pode levar até oito horas, tempo e energia que a maioria das pessoas simplesmente não tem.
Em um sistema onde algoritmos decidem quem merece cuidado, a tecnologia que deveria salvar vidas, passou a ser usada para negá-las.
O homem que decidiu lutar contra o algoritmo
O ponto de virada dessa história veio com Neal K. Shah, um ex-sócio de fundo de investimento que abandonou o mundo financeiro para empreender na área da saúde.
Shah conta que, em meio às pilhas de contas hospitalares e notificações de negação de cobertura, percebeu um padrão assustador.
Foi a partir desse questionamento que Neal Shah decidiu criar a Counterforce Health, uma startup da Carolina do Norte que está, literalmente, usando IA para lutar contra a IA.
A plataforma permite que qualquer paciente ou clínica envie sua carta de negação e, em poucos minutos, receba uma apelação gerada por inteligência artificial, com base em literatura médica, políticas de cobertura e casos semelhantes já vencidos.
O que antes levava horas de pesquisa e frustração, agora pode ser feito com um clique.
Segundo Shah, as taxas de reversão já ultrapassam 70%. E o mais impressionante: a ferramenta é gratuita, financiada por fundos de pesquisa e doações, como a bolsa de US$ 2,47 milhões da PennAITech, vinculada à Universidade da Pensilvânia.
“As seguradoras usam IA para negar pedidos em segundos”, disse Shah. “Nós a usamos para garantir que ninguém seja negado tão rápido quanto foi esquecido.”
O que mais me impressiona nessa história não é apenas o uso engenhoso da tecnologia, mas o resgate da ética e da empatia por meio dela. A mesma IA que foi treinada para negar cuidado agora está sendo reprogramada para restaurar a humanidade do sistema.
Conclusão
Escrevi este artigo não apenas porque este é um blog sobre Data Science e IA, mas porque essa foi uma das histórias mais inspiradoras que encontrei nos últimos tempos.
Fui criado pelos meus avós e, há alguns anos, acompanhei de perto o sofrimento do meu avô com Alzheimer. Quando ele caiu e fraturou o fêmur, passou um ano internado e vários meses recebendo cuidados em casa.
Senti na pele a vulnerabilidade de ser visto como um “alto custo” para o plano de saúde.
Isso aconteceu no Brasil, mas quando li os posts do Neal K. Shah no LinkedIn, me conectei imediatamente com sua missão. A diferença é que ele decidiu transformar essa indignação em ação, e está usando a tecnologia para devolver humanidade a um sistema que a perdeu.
Histórias como essa me lembram por que escolhi trabalhar com dados e inteligência artificial: porque, no fim das contas, a tecnologia só faz sentido quando serve às pessoas.
Se você também quiser conhecer mais sobre essa iniciativa, assim como eu quis, visite a página da Counterforce Health.